O Decreto-Lei nº 406/1968 instituiu tributação diferenciada de ISS para sociedades de profissionais. Nos termos do decreto-lei, quando serviços de medicina, contabilidade, engenharia, arquitetura, odontologia, advocacia, economia, psicologia, entre outros, forem prestados por sociedades, o ISS não terá como base de cálculo o preço do serviço: o imposto será calculado em relação ao número de profissionais habilitados que prestem serviços em nome da sociedade, embora assumindo responsabilidade pessoal[1].

Em que pese a legislação não traga absolutamente nenhuma restrição nesse sentido, diversos municípios têm excluído sociedades simples constituídas sob a forma limitada do regime especial de tributação do ISS, com o argumento de que esse tipo societário seria incompatível com o requisito “responsabilidade pessoal”. São inúmeros casos em que o único e exclusivo fundamento para o desenquadramento é o fato de o contribuinte ser sociedade limitada.

Esses desenquadramentos vêm acompanhados de autuação fiscal para demandar ISS calculado sobre o valor total dos serviços prestados pela sociedade nos últimos cinco anos, além de multa pelo não recolhimento do imposto e multa pelo descumprimento de obrigação acessória.

Há diversos questionamentos que podem ser feitos com relação ao ato de desenquadramento e às autuações. Para este artigo, selecionamos a seguinte questão:

O fato de a sociedade ser constituída sob a forma limitada é suficiente, por si só, para descaracterizá-la como sociedade profissional, para fins de recolhimento do ISS?

Por muito tempo, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que sim: o tratamento privilegiado previsto no artigo 9º, §3º do Decreto-Lei 406/68 não se estenderia à sociedade limitada porque, nessa espécie societária, a responsabilidade do sócio é limitada ao capital social, incompatível com a responsabilidade pessoal exigida pela legislação[2]. Acatava-se a tese fazendária.

Contudo, houve uma reformulação nesse entendimento. No julgamento do Recurso Especial nº 1.512.652/RS (DJE 30/03/2015), ressaltou-se que “a forma societária limitada não é o elemento axial ou decisivo para se definir o sistema de tributação do ISS, porquanto, na verdade, o ponto nodal para essa definição é a circunstância, acolhida no acórdão, que as profissionais odontólogas exercem direta e pessoalmente a prestação dos serviços”.

Desde então, ambas as Turmas do STJ reafirmaram diversas vezes esse novo posicionamento, e de forma unânime[3]. As decisões passaram a afirmar que o Código Civil, em seu artigo 983, admite que uma sociedade simples se constitua como sociedade limitada, e o fato de ela usar esse tipo societário não a descaracteriza como sociedade simples se o seu objeto não for empresarial.

Além disso, as decisões passaram a consignar também que “o fato de a sociedade adotar o tipo de sociedade simples limitada não é fundamento suficiente para a impedir de usufruir de tributação privilegiada, pois não interfere na pessoalidade do serviço prestado, nem tampouco na responsabilidade pessoal que é atribuída ao profissional pela legislação de regência”.

Assim, firmou-se o entendimento de que o direito de uma sociedade simples à tributação diferenciada não é restringido pelo “fator limitada”, mas pelo “fator empresarial”: quando os serviços não forem prestados pelos profissionais em caráter de pessoalidade, e sim em caráter empresarial, como empresa a sociedade será tributada.

Em acórdão do final de 2019 a Primeira Turma do STJ reconheceu o direito de uma sociedade de médicos à tributação diferenciada pelo fato de ser uma sociedade de médicos, dispensando expressamente a análise de qualquer outra questão fática.

A decisão apontou que a natureza dos serviços prestados (isto é, serviços médicos) implicaria, por si só, a responsabilidade pessoal[4]. A sociedade em questão era constituída sob a forma limitada e a decisão foi unânime.

Nada obstante essa verdadeira evolução do entendimento do STJ, recentemente, fomos surpreendidos com a publicação de dois acórdãos do STJ que, se reportando a precedentes do passado, fizeram a estarrecedora afirmação de que, “nos termos da jurisprudência pacífica do STJ, as sociedades constituídas sob a forma de responsabilidade limitada não fazem jus à tributação privilegiada do ISS”[5].

O apontamento é incoerente justamente porque se refere a um posicionamento ultrapassado como “jurisprudência pacífica”, quando evidentemente não é. Se o STJ estivesse mudando novamente a sua orientação (o que entendemos não ser o caso), deveria deixar isso claro e justificado e não ignorar suas próprias decisões proferidas nos últimos anos.

Agora, se no caso concreto havia ou não elementos empresariais presentes, caberia às decisões judiciais indicar precisamente suas causas de decidir e a elas se ater, o que não ocorreu.

Diante da incongruência posta acima, deve o Poder Judiciário, como um dos instrumentos na busca para estabilidade, previsibilidade e proteção da confiança nas relações jurídicas, rever sua jurisprudência visando à uniformização quanto ao “fator limitada”, para dirimir o conflito entre Fisco Municipal e contribuintes nas autuações municipais fundamentadas exclusivamente nessa ‘acusação’ contra as sociedades simples.

Caroline Zing

Advogada SLM

 

*Artigo publicado no site JOTA, em 03/07/2020. Link: www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/women-in-tax-brazil/iss-sociedades-de-profissionais-e-o-fator-limitada

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[1] No Município de São Paulo, por exemplo, o ISS é calculado mediante aplicação da alíquota sobre um valor fixo (R$ 800,00), multiplicado pelo número de profissionais habilitados (sócios ou empregados).

[2] Dentre os quais, destacamos: (i) AgRg nos EDcl no AREsp 33365/PR, Rel. Min. Humberto Martins, Segunda Turma, DJE 25/11/2011; (ii) REsp 1.221.027/SP, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJE 04/03/2011; (iii) AgRg no REsp 1.178.984/SP, Rel. Min. Benedito Gonçalves, DJE 05/11/2010; (iv) Agrg nos EREsp 951.870/RS, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, Primeira Seção, DJE 25/11/2009.

[3] Destacamos: (i) AgRg no REsp 792.978, DJE 14/12/2015, Segunda Turma; (ii) REsp 1.645.813, DJE 11/10/2017, Segunda Turma; (iii) REsp 1.721.218, DJE 02/08/2018, Segunda Turma; (iv) AgInt no AREsp 1.400.942, DJE 22/10/2018, Primeira Turma; (v) AgInt no AREsp 1.226.637, DJE 07/11/2018, Primeira Turma; (vi) AgInt no AREsp 1.760.627, DJE 14/06/2019, Segunda Turma; (vii) REsp 1.804.696, DJE 17/06/2019, DJE 17/06/2019, Segunda Turma.

[4] “Na espécie, como afirmado acima, trata-se de sociedade de médicos, em que se presta serviço pessoal a terceiros, não sendo necessária qualquer análise a respeito do contrato social e do suporte fático-probatório dos autos para se chegar a essa conclusão. Realmente, pela própria natureza dos serviços prestados pela parte agravada, desnecessário o estudo de matéria fático-probatória, bastando apenas a aplicação do direito à espécie”. (AgInt no AgRg no AREsp 504.567, DJE 08/11/2019, Primeira Turma).

[5] AgInt no REsp 1.348.119/AL, DJE 14/02/2020 e AREsp 1.448.466/SP, DJE 19/12/2019.

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